Por Cleber Corrêa e Nando Oliveira
A Loira do Circo. Assim ficou conhecida Dona Maria Aparecida Nogueira, 89 anos, ex-trapezista e contorcionista, hoje poeta. Aos oito anos de idade, D. Maria deixou tudo e foi embora com sua mãe, que havia se apaixonado por um palhaço do circo, conhecido por Pindoba.
Dona Maria, durante 20 anos, se dedicou à arte circense. Com muito treinamento, se tornou a contorcionista e trapezista do “Gram Circo Oliveira”, que viajava por todo o Estado. E por onde passava, a bela Loira do Circo arrancava suspiros de garotos e marmanjos da época.
Com seus olhos claros, a loira despertava o sentimento no coração de muitos homens. Alguns acompanhavam o circo a cavalo só para tentar ganhar o coração da bela moça. Certo dia, um homem com o nome Valdinei, filho de família rica de Nova Serrana, dobrou o coração da contorcionista.
Por algum tempo eles se encontraram às escondidas. Nenhum pai naquela época permitiria que seu filho namorasse ou se casasse com uma garota de circo. Apaixonados, combinaram fugir após a ultima apresentação na cidade. Valdinei, então, deu à enamorada uma lamparina e pediu para ascendê-la assim que terminasse o o último espetáculo.
Assim fez a moça. Esperou até amanhecer e o rapaz não apareceu. A Loira então juntou as suas coisas e foi embora com o circo para outra cidade.
A próxima parada foi em Piraúba, na Zona da Mata mineira. Era final de ano. O clima não era muito favorável a circos. Preparativos de natal, temporada de chuvas e dinheiro restrito espantam o público do circo e os atores às vezes não têm dinheiro nem para comer.
Após algumas semanas no arraial de Piraúba e nenhuma apresentação, o jeito o foi recorrer aos santos caraminguás. Na igreja da cidade, próximo às imagens dos Santos, havia pires, como os de xícaras, onde os fieis depositavam suas oferendas como pagamento por uma interseção divina.
D. Maria e sua irmã, com a barriga vazia, não vacilaram em pegar o dinheiro para comprar alguma coisa para comer. “Santo não precisa de dinheiro, porque não precisam comer. Mas nós estávamos famintas e o dinheiro era só emprestado. Pegamos, mas prometemos: assim que as apresentações começassem, devolveríamos tudo”, conta D. Maria.
Com o santo e minguado dinheirinho em mãos, correram para a venda do seu Zé, onde compraram pães para sua mãe e outros do circo. O sacristão, vendo a contribuição desaparecer, logo deduziu que os santos, subitamente, ganharam sócios. Resolveu montar o cerco e ficar vigilante. Facilmente, descobriu que as sócias em questão eram as meninas do circo.
Cioso de sua função, contou tudo ao Padre, que, em um ato de bondade celestial, foi até a venda e comprou mais alguns mantimentos. Levou tudo ao circo, onde os artistas estavam passando por necessidades. O mal tempo passou e todo aquele pouco dinheiro emprestado pela Igreja foi devolvido pelas meninas.
O circo então seguiu viagem para São Gonçalo do Pará, no inicio da década de 40. Na cidade, a bela trapezista despertou o coração de muitos homens, mas um em especial, Antônio Nogueira Maia, um rico fazendeiro, cismou e, convicto de seu amor, acompanhou o circo durante um ano, em todas suas apresentações.
O fazendeiro, após ter ficado noivo oito vezes e não ter se casado com nenhuma das moças por não serem virgens, estava a procura de um outro amor - mas que fosse virgem e pura. Após um ano de apresentações, ele resolveu se aproximar da Loira do Circo e pedi-la em casamento.
- Você quer casar comigo? - perguntou, resoluto.
- De papel passado e tudo? - desolveu a Loira, sem pestanejar.
- Sim! - garantiu o fazendeiro.
- Você me dá cinco dias para pensar? - titubeou a moça.
- Combinado! - desolveu Antônio, ogulhoso e convicto de sua conquista.
Cansada daquela vida de estradeira errante, Maria Aparecida pensou e aceitou se casar com aquele homem, rico, que poderia lhe proporcionar uma vida melhor para ela e seus futuros filhos. Mesmo com a reprovação de sua mãe e seu padastro, a Loira do Circo se casaria com Antônio Nogueira.
Contra a vontade de sua família, o rico fazendeiro marcou o casamento e não convidou ninguém para a cerimônia, celebrada por Padre João Parreira Villaça, na matriz de São Gonçalo, em 1942. A Igreja ficou repleta de curiosos que foram conferir o casamento da Loira do Circo com o lampião de São Gonçalo do Pará, como era conhecido o fazendeiro.
Já morando na fazenda, D. Maria começou a conhecer o seu parceiro e entender o porquê de seu apelido e fama. O fazendeiro era ríspido e violento. Resignada, após um ano de casada e sozinha na fazenda, a D. Maria só restavam as lembranças, retratadas nas inúmeras fotografias guardadas em em inseparável baú.
Emocionada e com lágrimas descendo pelo rosto, em uma noite fria e escura, a moça escutou a porta se abrindo: “Chegou o fazendeiro" murmurou aflita. Ao ver a cena, o fazendeiro perguntou o porquê do chororô.
Irritado com sua explicação, Lampião resolveu dar um fim naslembranças da esposa. D. Maria lembra que, em pouco tempo, viu tudo o que guardara – poemas de admiradores, canções de amor e saudade, e fotos de uma vida em liberdade – arderem em chamas. Ela conta que ainda conseguiu salvar algumas fotografias, apagando o fogo com os pés assim que ele virou as costas.
A via crucis Maria Aparecida Nogueira continuaria. Alguns anos após o acontecido, ela estava sentada em uma das janelas da fazenda à noite, tocando o seu violão e cantando bem alto, pois os vizinhos estavam a alguns quilômetros dali. Era uma noite chuvosa. Ao entrar em casa encharcado – de chuva e cachaça -, o marido, como costumeiro, lhe perguntou rispidamente:
- O que você está fazenda aí, trepada na janela e acordada até agora?
- Estou te esperando!- Besteira.- E emendou: Estou cansado! Vou deitar.
Maria resmungou, como que para seus botões: “E bêbedo!”
O sussuro foi decodificado. O marido, enfurecido, lançou o violão na parede várias vezes, deixando-o completamente destruído.
Lembranças. Apenas lembranças, que se tornam vivas e presentes quando narradas. E foi isso o que ocorreu com as memórias de Maria Aparecida Nogueira, cujas histórias viraram livro em 1992, com o lançamento de “Retalhos de uma vida”. Hoje, ela dedica seu tempo a escrever e recitar poemas por todo o País. Aos 89 anos, são mais de 62 poemas decorados, fato que chama a atenção de muitas pessoas.
Em um encontro internacional de poetas no Palácio das Artes no ano passado, ela foi aplaudida de pé pelos presentes. Recém chegada de Salvador, Bahia, onde apresentou uma peça teatral coordenada pelo também poeta divinopolitano Osvaldo André, a Loira do Circo dá uma lição de vida. Mesmo sofrendo com a labirintite, ela mostra muita disposição em contar um pouco de suas histórias. Hoje ela ri de alguns fatos inusitados ou trágicos que marcaram sua vida. Aos leitores de Virgula Online, ela deixa uma frase exclusiva . “Nesta vida, o importante é ser, que é bem melhor que ter.”